Há limite para o trote?

Quando entram na universidade, muitos jovens são pressionados a participar de atividades que vão de pintura de rosto a agressões físicas

Chicotadas, humilhações, tapas, xingamentos, cuspe no rosto, ameaças, abuso sexual, estupro e até envenenamento. Esses atos foram praticados por estudantes de grandes universidades públicas e privadas do Brasil, nos últimos 10 anos, como parte da recepção de candidatos aprovados no vestibular. O ritual é popularmente conhecido como “trote”.
Desde dezembro de 2014, relatos de práticas como essas vêm sendo colhidos por integrantes de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp), que apura a violação dos direitos humanos em universidades paulistas.
Os depoimentos na CPI comprovam que pouca coisa mudou desde a morte do estudante Edison Hsueh, em 1999. Edison tinha acabado de ingressar na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) e morreu afogado durante trote organizado por alunos do mesmo curso. Ele foi jogado na piscina da associação atlética da faculdade, mesmo sem saber nadar. Em 2013, o Supremo Tribunal Federal (STF) absolveu os quatro acusados do crime definitivamente, por falta de provas.
Neste ano, o trote ainda pode ser uma ameaça para muitos jovens que estão ingressando no ensino superior. A pergunta que fica é: até quando as agressões ocorridas dentro e ao redor de universidades ficarão impunes no Brasil?
Brincadeira ou violência?
Pinturas no rosto e no corpo, gincanas e corte de cabelo são os trotes mais noticiados pela mídia. As atividades costumam acontecer no momento da matrícula, nos primeiros dias de aula e nas festas de “recepção de calouros”, dentro e fora das dependências das universidades. A justificativa é dar as boas-vindas aos novos alunos. Para muitos, o trote é apenas uma brincadeira, enquanto outros se sentem forçados a participar. Afinal, há limite para o trote?
O doutor em Sociologia Antônio Ribeiro de Almeida Júnior, que estuda trotes desde 2001, é contra qualquer forma de trote, até mesmo os “solidários”. Ele defende que a prática deve ser banida das universidades. “O trote não é uma forma de integração, ele divide os alunos. Não existe limite, aquilo que é brincadeira para um pode ser violência para outro”, afirma o especialista, que escreveu livros sobre o assunto e é professor do Departamento de Economia, Administração e Sociologia da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, da Universidade de São Paulo (Esalq-USP), unidade localizada em Piracicaba, no interior de São Paulo.
Almeida Júnior explica que em algumas universidades o trote é institucional, ou seja, faz parte da cultura da instituição e recebe apoio de alunos, professores, funcionários do alto escalão e até de ex-alunos. Nesses casos, os abusos acabam sendo escondidos. “O trote é um processo de seleção de pessoas para grupos que disputam o poder dentro dessas universidades. Para fazer parte do grupo, a pessoa deve obedecer e permanecer em silêncio mesmo após ser humilhada e agredida.” O professor sugere que expressões como “calouro”, “bicho”, “veterano”, “trote solidário” e “trote do bem” sejam evitadas pelas instituições.
O deputado estadual Adriano Diogo, que preside a CPI na Alesp, conta que ficou abalado com a violência descrita pelos universitários. “Eu tenho 65 anos, presidi a Comissão Nacional da Verdade e já fui preso político. O que mais me surpreendeu foram as atrocidades, as barbaridades relatadas. A postura de quem aplica o trote é a mesma de um torturador.”
A CPI deverá apresentar um relatório até 15 de março, quando se encerra a atual legislatura. Até lá, Adriano Diogo, que não foi reeleito, espera ouvir também depoimentos de vítimas de trotes em outros Estados. Para ele, a prática deve ser criminalizada em todo o País. “O trote tem que ser enquadrado como crime de tortura, pois é uma grave violação dos direitos humanos.”
Depressão e medo
Em relato sigiloso à CPI, uma aluna da Esalq disse que foi agredida com chutes, recebeu cuspe no rosto e foi xingada de “bichete escrota” por se recusar a ficar de joelhos. Segundo ela, todos os praticantes de trote são conhecidos por apelidos, o que dificulta a identificação deles.
A jovem ainda contou que, em 2008, foi pressionada a beber cerveja durante uma festa e acredita que recebeu o líquido adulterado com droga, o que a deixou dopada. “Eu me vi isolada e hostilizada por muitos. Foi um período muito difícil, no qual estive deprimida e considerei até abandonar a universidade”, afirmou.
Já o estudante Felipe Yarid, também da Esalq, afirmou que foi atacado repetidas vezes com um veneno agrícola lançado em gotas sobre sua pele, até mesmo dentro de sala de aula. Ele teve de se afastar da universidade durante um ano. “Meu corpo estava tão degradado pelo veneno que eu não conseguia fazer mais nada”, explicou.
Alunas da Faculdade de Medicina da USP relataram perseguição dentro da instituição e abusos sexuais. Algumas disseram que foram dopadas antes de ser estupradas. Segundo os depoimentos, as jovens não tiveram apoio da diretoria e algumas desenvolveram depressão. Estudantes do curso de Medicina do campus de Sorocaba da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) também falaram sobre humilhações em trotes aplicados entre 2013 e 2014. As práticas incluíam até forçar primeiranistas a ingerir misturas com vômito, pimenta, urina e fezes.
Adriano Diogo alerta que o fim da violência depende da mobilização da sociedade. “Nós precisamos falar para o pai e para a mãe do jovem que está entrando na faculdade: não deixe seu filho cortar o cabelo, pintar o rosto, tirar a roupa, não aceite o trote, revolte-se, chame a polícia.”
A assessoria de imprensa da USP informou que uma portaria de 1999 proíbe o trote na instituição. No último dia 21, o reitor da USP, Marco Antonio Zago, disse à CPI da Alesp que determinou que a Comissão de Direitos Humanos da instituição apure todas as denúncias de abusos.
A Esalq disse à reportagem que seguirá a orientação da Procuradoria-Geral da USP e acrescentou que vai aperfeiçoar os mecanismos de esclarecimento dos alunos e da comunidade em geral para reduzir ocorrências de trote e outras formas de agressão aos direitos humanos.
Uma nota assinada pela Reitoria da PUC-SP afirmou que a instituição tem “como missão educativa a formação de cidadãos que atuem com ética e respeito à dignidade humana [...]. Por isso enfatizamos que a nossa Universidade repudia a violência no trote, proibido dentro do campus”.

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